PL 1904: 22 semanas é suficiente?

Fonte: Depositphotos/Reprodução

22 semanas é suficiente para o bebê já ouvir alguns sons de fora do corpo da mãe.

22 semanas é suficiente para o bebê bombear 24 litros de sangue pelo coração.

22 semanas é suficiente para o bebê ter papilas gustativas.

22 semanas é suficiente para o bebê ter cerca de 26 centímetros. 

22 semanas não é suficiente para um aborto em situações reais de gravidez resultante de estupro.

        Um breve contexto: o aborto é criminalizado pelo Código Penal brasileiro, nos artigos 124 a 126. Portanto, aborto é crime. Entretanto, existem situações de extinção de punibilidade (não haverá punição por sua conduta), previstas no artigo 128, que são: “I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”. Ainda, segundo o STF, quando o feto é diagnosticado com anencefalia, com consentimento, também pode haver. O primeiro é chamado de necessário, o segundo de humanitário e o terceiro de eugênico. Focaremos nossa análise somente no caso do artigo 128, inciso II.

         O Projeto de Lei 1.904 busca acrescentar nos artigos 124 a 126 e também no artigo 128, inciso II (no caso de gravidez resultante de estupro), que a partir de 22 semanas de gestação, com viabilidade fetal, o aborto contituirá crime (não se aplicará a excludente de punibilidade) com a pena de homicídio simples (daí vem “a pena maior que a do estuprador”). 

Observação: Art. 213 – Estupro; pena de 6 a 10 anos;

Art. 217-A – Estupro de vulnerável (menor de 14 anos); pena de 8 a 15 anos;

Art. 121 – Homicídio simples; pena de 6 a 20 anos.

         Vale destacar que o PL não traz a punição para a conduta anterior a esse prazo de 22 semanas, mantendo, nesse período, a extinção de punibilidade. Portanto, não se trata de um Projeto de Lei que busca criminalizar totalmente a conduta do aborto nesse caso, mas aplicar um “prazo” para que haja a interrupção da gestação. Ademais, buscam acrescentar uma possibilidade de “perdão judicial”, que será aplicado pelo juiz no julgamento do caso, deixando de aplicar a pena devido ao abalo sofrido pela gestante. 

          Porém, faremos distinta reflexão.

Reflita: em casos de estupro, será que 22 semanas é realmente um “prazo” suficiente para que o aborto seja feito?

         Em uma situação ideal, a vítima, imediatamente após o crime, deve ir a uma delegacia, onde será registrado um Boletim de Ocorrência, e será encaminhada para um hospital, a fim de realizar os exames necessários, físico geral, ginecológico e, indiretamente, psicológico, e receberá os medicamentos para a profilaxia para a prevenção ao vírus HIV, hepatite e outras ISTs, além da pílula do dia seguinte. Com o Boletim de Ocorrência, a vítima consegue fazer no IML o exame de corpo de delito, importante para a investigação do crime. Também idealmente, dependendo das circunstâncias do crime, a vítima pode permanecer no local do crime, chamando a polícia, para que haja uma perícia local, a qual pode auxiliar na investigação. Idealmente, não é recomendado que a vítima tome banho e, caso troque de roupas, deve preservar as utilizadas no momento da agressão. 

          Infelizmente, isso não é a realidade. Na maioria dos casos a vítima não tem coragem de ir às autoridades, não consegue, ou mesmo, não pode. Com isso, os exames, em geral, não são feitos, assim como a profilaxia adequada. Sem os exames, sem a preservação de roupas e sem possível perícia de local de crime, poucas se tornam as evidências que poderiam ser utilizadas pelas autoridades para a investigação. Em semelhante circunstância, caso a vítima não consiga, por conta própria, tomar a pílula do dia seguinte, a gravidez se torna mais possível e, mesmo tomando, ainda há a possibilidade de não alcançar o devido resultado. 

Observação: a pílula do dia seguinte pode ser tomada pela vítima em até 72 horas (três dias) após a agressão. Quanto maior a distância de tempo da agressão até a administração do remédio, menor a sua eficácia. Dependendo da pílula e da dose, é necessária mais de uma administração. 

          Considerando essas informações, a vítima, não recorrendo às autoridades e, consequentemente, não recebendo o acompanhamento médico devido, tem as suas chances de gravidez resultante de estupro aumentadas. Analisando-se o caso, então, de uma criança ou, até mesmo, de uma pessoa com menor instrução, há maiores dificuldades para que a prevenção devida seja aplicada. Esta é a realidade. 

          Antes de comentar sobre o processo para o abortamento neste caso, vale tratar de um ponto não muito pensado nesta análise: o conhecimento pessoal ginecológico. Sim, muitas mulheres não conseguem compreender a gravidez e o corpo, e diversos mitos são gerados em torno disso. Então, não, não é uma realidade distante uma gestante vir a descobrir em momentos próximos ao parto ou ao final da gravidez.

         Atualmente, principalmente com as redes sociais, diversos médicos procuram usar esses meios para disseminar maiores informações sobre gestação e desmistificar muitas desinformações espalhadas, como “menstruação e gravidez”. Não será um debate, aqui instituído, sobre questões médicas, mas, deste contexto, um fato: há grande déficit de instrução da mulher em relação ao seu próprio corpo e, principalmente, à gravidez. Por conta disso, torna-se realidade a mulher não compreender diversos sintomas da gestação presentes em seu corpo durante esse período e não se dar conta até um momento mais avançado. Imagine comigo: a vítima, por conta própria, tomou a pílula do dia seguinte, sem acompanhamento médico, mas, por ela, de maneira devida. Portanto, para ela, a prevenção foi feita e não há motivo de maior preocupação com uma gestação. Concomitantemente, esta mulher não possui tanto conhecimento ou tanta instrução sobre o seu próprio corpo ou sobre sinais e sintomas de uma gravidez que podem se manifestar. Adicionemos, ainda, uma negação psicológica da mulher, a fim de querer superar e guardar a agressão para si. Será suficiente 22 semanas para ela descobrir?

       Considerando a descoberta da gravidez, como proceder? Idealmente, a mulher deve se dirigir a um hospital que faça o aborto legal e, no local, passará por uma triagem comum, examinando o tempo de gestação e o procedimento que então será adotado. Exames como ultrassonografia, dosagem Beta-HCG e teste de HIV são feitos. Para o aborto legal, a mulher ou o representante legal deve assinar alguns documentos no hospital, não necessitando do Boletim de Ocorrência ou de outro documento que ateste o crime. Assim, os exigidos são: relato da vítima, em que profissionais redigem o relato do acontecido, poderá ser substituído pelo BO, parecer técnico, aprovação para a interrupção, termo de responsabilidade, termo de consentimento livre e esclarecido. Com esses documentos, considerando que são feitos em um único dia, a vítima é encaminhada para a enfermaria para, então, realizar o procedimento. Na prática, caso um dos profissionais responsáveis por uma dessas documentações esteja ausente, não será possível a formulação de todos em um só dia. Ademais, não é tão fácil quanto na teoria: embora seja a recomendação confiar no relato da mulher, questionamentos, dúvidas, desconfianças e preconceitos são comuns diante dessa situação, ainda mais quando a gestação se aproxima das 22 semanas. Com isso, é frequente que a vítima seja negada do procedimento e tenha que procurar outro local para realizá-lo, além de passar por situações de embaraço e/ou de hostilidade, como tentativas de convencê-la a não realizar o aborto, exposições desnecessárias a outros e, até mesmo, ser obrigada a ouvir os batimentos cardíacos do bebê. 

        Ainda sobre a realidade, embora o aborto legal seja oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o número de unidades de referência que realizam esse procedimento é muito baixo, cerca de 154 unidades somente em 104 municípios (1,86% dos municípios brasileiros), segundo um levantamento da GloboNews sobre o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde. O Amapá, por exemplo, não tem unidade e, por isso, mulheres de cidades que não possuem precisam viajar para conseguir ter acesso ao procedimento. Mais um óbice: a mulher ter condições de sair de sua cidade e ir a outra para realizar o procedimento. Será 22 semanas suficiente para ela descobrir e viajar?

           Ainda, para o procedimento, o aborto é, sim, mais seguro até o terceiro mês, quando tem menos riscos de hemorragia e de infecção. A mulher deve ficar no hospital até a confirmação de que esteja bem e sem sintomas, normalmente de 24 a 36 horas. Diante disso, a vítima deve, também, receber acompanhamento psicológico – o que falha, diversas vezes. Dificultando o acesso ao aborto, antes mesmo desse Projeto de Lei, o Conselho Federal de Medicina (CFM), em abril, proibiu o procedimento médico pré-aborto após as 22 semanas, chamado de assistolia fetal, que é uma injeção de uma substância, a qual provoca a morte do feto, para que ele seja retirado depois. A Organização Mundial de Saúde, entretanto, respalda esse procedimento a partir de 20 semanas. Anteriormente a esse período, a orientação é de abortamento farmacológico, dilatação seguida de curetagem ou procedimentos aspirativos. 

         Além disso, alguns relatos de situações prejudiciais a essas vítimas chegaram à mídia, mas, sem dúvidas, a grande maioria ainda é desconhecido. O Correio Braziliense, por exemplo, publicou uma matéria comentando sobre uma vítima que teve o aborto negado em três hospitais em São Paulo, pois só descobriu quando completou 24 semanas. Nesse caso, na terceira unidade, ela foi obrigada a ouvir os batimentos cardíacos. Ela conseguiu realizar o procedimento, somente, em outro estado. Diversos são os casos, ainda, que essas vítimas passam por uma revitimização ao enfrentarem discriminações e impedimentos para realizar o procedimento. 

         Por fim, mas, com certeza, não menos importante: vamos refletir sobre toda essa realidade com crianças ou adolescentes. As vítimas dessa faixa etária passam por situações que complicam, ainda mais, a identificação tanto do crime, quanto da gravidez decorrente do estupro. Infelizmente, a realidade é que a maioria dos casos de estupro de crianças e adolescentes ocorre dentro de casa, com pessoas próximas ou familiares, dando menores indícios do que está acontecendo. Uma matéria do Estado de Minas citou um caso em que a mãe descartou a hipótese de gravidez em sua filha, “já que ela não saía de casa sozinha”. Esse é o cenário de muitos casos, que, somado a circunstâncias acima comentadas, dificulta que a gravidez seja descoberta e o procedimento seja feito em até 22 semanas. Questiona-se, com isso, a prevalência do que o ECA (Estatuto da Crianças e do Adolescente) traz, com foco na proteção dos direitos desses indivíduos, em relação a impedimentos. A criança, além de não conseguir identificar o que passou, é coagida a não contar a outros e, por sua idade, não entende a dimensão da gravidez, sua possibilidade e sintomas. Até o momento que alguém identifique a gravidez e procure realizar o procedimento, podendo não ter em sua cidade e aumentar as dificuldades. Será 22 semanas suficiente para que os direitos dessa criança sejam protegidos?

             A reflexão que fica é: será que esse “prazo”, em casos de gravidez resultante de estupro, irá defender os direitos da vítima?

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